Rastros de duendes no corpo poético de
Federico García Lorca
Roberto Medina*
Extraído de
PÉREZ-LABORDE, Elga, org. Lorca Total. Textos sobre a poesia e o teatro de Federico García Lorca aos 80 anos de sua morte comemorada no Brasil – 1898-1936. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017. 227 P. 16X23 CM. ISBN 978-85-7113-895-7 Ex. bibl. Antonio Miranda
Ao associar uma poética ao corpo da obra de Federico García Lorca (1898-1936), arriscam-se julgamentos estéticos que, às vezes, o próprio artista descreve ou insinua em diferentes fases de sua produção. É senso comum a impossibilidade de termos acesso à mente criativa em plena execução da tarefa artística e à mitologia secreta do autor; no entanto, podemos nos cercar daquilo que o escritor registrou sobre estética e sobre a própria poética ou projeto artístico. Assim, vamos ao encalço de algumas notas de Federico García Lorca em conferências pronunciadas durante as primeiras décadas do século XX até seu assassinato pelas armas franquistas em agosto de 1936.
Para García Lorca, o pulsar da vida e o movimento dela foram o nutriente maior para a produção poética nas terras andaluzas. Aliando as propostas das vanguardas e elementos da tradição cultural ao seu fazer poético, o escritor trouxe luzes à criação literária mediante seu método peculiar e sensível na autoria de poemas e construções dramatúrgicas. É sabido que o leitor e o espectador devem tentar seguir as pistas deixadas no rastro para reconstituir o sujeito que passou com seu corpo material e intelectual. Um dos caminhos possíveis para essa empreitada está nos vestígios das reflexões teóricas e autorais marcadas em falas públicas e na própria obra.
O entendimento e a imaginação são primordiais para um artista plasmar o objeto artístico, como acontece na arte lorqueana. Não obstante, esse seguir as pistas deve, parece-me, conduzir a uma visão de mundo, pois os domínios dos dispositivos do fazer artístico ficam em uma esfera menor para os artífices da arte da palavra e da encenação.
Na perspectiva de García Lorca, a inspiração é vista com desconfiança, uma vez que é um território onde habitam "musas e anjos". Ele não se deixa conduzir pela ideia do gênio romântico, criador a partir de si mesmo, no caso do poeta granadino, os elos nascem de um pensar preciso da tradição, depois o repertório da cultura virá a contribuir mais especificamente com os propósitos da mecânica empreendida em sua "claridad invasora", segundo o prólogo de Jorge Guillén,1 e questiona: "Para quién se escribe? Se escribe lo mejor que se puede, eso que bulle en la cabeza, en el alma, sobre el papel, y lo escrito hallará su público: una comunidad de lengua y de cultura".
Como se sabe, o assombro do sublime na obra lorqueana chega ao "ver" ou ao "ouvir" de forma sedutora e irresistível. O poético presentifica-se como anjo andaluz que harmoniza a tradição culta e popular com os ares modernos. A paisagem da Andaluzia é poetizada nos versos e nas almas dos leitores e dos espectadores. Esses são tomados de um só golpe, retornando depois que seus corpos deixam de estremecer pela experiência estética dos ouvidos e dos olhos. O "duende" tomou-os em máxima potência e esplendor. Atravessou suas carnes, veio pelas entranhas, atingiu-os no coração, revivendo os impasses da vida e os encantos da dança, da tourada e do canto flamenco por meio do lirismo dramático.
Para García Lorca, a palavra não é apenas condutora da estética, mas representa também o húmus que forja a matéria que ela faz vibrar.
Essa poesia selvagem e magnética transita dos versos para as peças teatrais. O sublime, nesses textos literários, transborda-se de terror e de êxtase, como que direcionado para a morte: evento único e misterioso. Assim como o "duende" está no instintivo humano e precisa do corpo do homem para existir, também na arte enduendada e no "aqui e agora" é que a poesia verdadeira se torna carne selvagem.
O surrealismo, como porta do onírico, contribuiu para o pensamento criativo de García Lorca. Na inspiração, por exemplo, o poético não suporta correntes ou prisões, ele foge das garras do racional, a emoção poética para se materializar tem de estar obrando no seu próprio desregramento dos sentidos do intelecto como "misterio visible", desligado, em primeira mão, do automatismo da escrita.2 O "duende" – que precisa do corpo para se manifestar artísticamente – é tido como "La virtud mágica del poema consiste en estar siempre enduendado para bautizar con agua oscura a todos los que miran, [...] esta lucha por la expresión y por la comunicación de la expresión adquiere a veces, en poesía, caracteres mortales" (GARCÍA LORCA, 1986, p. 315).3
O "duende" entra pela planta dos pés do artista, após vai circulando no sangue e invadindo o criativo. Põe-se nos empasses entre a experiência humana e a própria expressão da linguagem, deixando, na arte literária, sua "presença em ausência" do gesto escritural. O rastro impresso pelo verdadeiro poeta que se deixa "enduendar" nota-se no instante em que se permite animar, isto é, "dar alma" ao escrito, inaugurando um "fato ou evento poético". Aqui, percebemos que o vivo, ou seja, o corpo, se presta à escritura, todavia o corpus se identifica com o escrito morto, palavras desalmadas, para, em seguida, reencarnar pela leitura, pela visão ou pela audição do fruidor da obra de arte o que o leva além do sentimento puro, chegando à verdade poética como criação em ato.
Para discutir o processo de criação literária e autoral de García Lorca, Cláudio Willer (2002)4 reapresenta o daimon grego, o delírio inspirado pelos deuses, a loucura divina, em Fedro,5 de Platão, ao afirmar sobre o "duende": "Parece sempre haver achado que o poeta era uma espécie de médium, veículo de uma fala não necessariamente sua, vinda de outro lugar, expressão de uma alteridade".
Na conferência "Imaginacion, inspiracion, evasion", García Lorca declara que o poeta deve buscar a arte verdadeira e retornar para "el tesoro que maneja" (p. 258) – entendido aqui como a linguagem e o mundo –, ainda salientando que, ao mudar de enunciado, se troca simultaneamente a "verdade poética". A poesia deve ser procurada com "esfuerzo y virtud", pois ela é objeto de amor, sendo a um só tempo obscura e clara. Dessa forma, a poesia autêntica entrega-se, nua, nos braços do amante poético. Ao contrário disso, se a metáfora é filha da imaginação, essa poesia está, por demais, limitada e vinculada à realidade das coisas humanas.
A imaginação, de acordo com García Lorca, liga-se ao que é existente e "tiene horizontes, quiere dibujar y concretar todo lo que abarca" (p. 259). A lógica humana, assim, fica sob o jugo da razão, não promovendo liberdade para a criação. Para voos poéticos mais ousados, a inspiração precisa ser mais livre para emoções mais intensas que vão além da técnica de composição. Essa inspiração poética configura-se no estado de alma, sai da análise e centra-se no ato de fé, não necessitando de causa nem de efeito, extravasando os pontos limítrofes da criação, em plena liberdade.
A inspiração poética possui sua própria lógica, também, poética, segundo García Lorca, é uma descoberta e "un don, un inefable regalo" (p. 261). Então, as incongruências e os desequilíbrios da inspiração poética podem inventar o fato poético. Não raras vezes, "la inspiración [...] no conoce al hombre y pone [...] un gusano lívido en los ojos claros de nuestra musa" (p. 263). Nesse aspecto, García Lorca demonstra a necessidade de que se aceite o evento poético como uma "lluvia de estrelas", de modo natural, sem os sopros ditados pela musa dos antigos gregos e portadora das mensagens divinas. Além disso, a poesia também pode se evadir "de las garras frías del razonamiento" (p. 263). A exemplo disso, o mundo dos sonhos também é translúcido, transpassando "forma y sensualidades" (p. 264). Para García Lorca, Heine é da poesia irônica e evadida, Góngora inclui-se na poesia imaginativa, e San Juan de la Cruz sintetiza a poesia inspirada.
O poeta granadino, ao dissertar sobre os três modos do fazer poético, não pretende adeptos, pois, como ele mesmo afirma, podemos apenas ser amantes da poesia. Por mais que um poeta "queira" captar os mistérios, esse mesmo ato de "querer" chega a ser um pecado. Em lugar de "querer", deve-se apenas "amar". No ato de "amar" está incluído o desejo poético. O evento da poesia foge à explicação em sua totalidade. Ela é a liberdade, portanto sem cadeia que a aprisione. Toda poesia nega a indiferença, uma vez que tal indiferença "es el sillón del demonio, pero ella es la que habla en las calles con un grotesco vestido de suficiencia y cultura" (p. 269).
O poeta é um caminhante que atravessa a realidade invisível para, nesse meio, construir relações com o inexistente. Por conta desse ato, a evasão poética é uma postura que leva ao inumano das coisas. Vai além dos limites e das margens que a lógica estabelece para a construção verbal dos versos e para o gozo poético. Há de existir, segundo García Lorca, uma poesia autêntica, como as imensas grutas e "ciudades encantadas" que se formaram pela ação paciente e eterna da água: gota a gota. Isso apenas acontece com a poesia original, conectada ao "sentido espiritual y hondo del poema puro" (p. 270). A paisagem subjetiva do poeta não basta para um poema autêntico ou para o milagre da poesia. O milagre da poesia e da arte acontece fora dos objetos conhecidos, da lógica captada na realidade e da vivência do poeta, mas por mais elevados que sejam os criadores poéticos, suas solas dos pés devem se apoiar nos picos das montanhas mais altas.
Na arte literária lorqueana, nota-se que a condição humana está empenhada na exposição e na alteração do modo de vida, pois a incomunicabilidade se manifesta tanto nos poemas quanto nas peças dramáticas. A criação artística vai atingir o contexto sócio-histórico da Espanha envelhecida e atrasada, pois García Lorca apreende as relações históricas e as conjuga como forma de temas e de reflexões estéticas nas suas obras de arte. Eleva ao máximo grau a súmula de Ortega y Gasset: "Yo soy yo y mi circunstancia".6 O labor poético não pode escamotear o âmbito social das classes espanholas de oprimidos e esquecidos, é também ler a vida e não fugir ao enfrentamento de todas as forças invisíveis que nos rodeiam e nos circunscrevem. Se a realidade radical é a vida, deduz-se, então, que a história e as circunstâncias definem o homem. No campo das representações artísticas, a emoção estética e a arquitetura verbal medeiam o referente nas construções mitopoéticas lorqueanas.
Nota-se que o poeta não só é atravessado por um consciente próprio como também pelas manifestações inconscientes da história, da cultura e da sociedade. Se o touro na arena deve ser dominado pelo olhar, o toureiro da poesia deve ser sensível ao olhar que as mazelas sociais imprimem nos rostos espanhóis, traduzindo atraso cultural e esquecimento das forças de liberdade, dissimuladas no apagamento da cultura popular nos discursos dos donos do poder. Contra isso, o imaginário poético de García Lorca opera como renovação artística enquanto "desumanização" da arte, ou seja, sua "desrealização", no sentido ortegueano,7 sendo que a arte se afasta da vida e de sua cotidianidade comuns a todos os homens e propõe a pura fruição estética.
Para Ortega y Gasset, a noção de que todos estamos imbricados e agarrados à vida é muito clara. A partir dessa visada, o artista inclui-se, ao estar atravessado pelo social e pelo pessoal. Em termos de noção de autoria, esse criador, portanto, joga o jogo da cultura e o da tradição. Nesse sentido, García Lorca inscreve a sua poiesis como criação e, em simbiose, configura a tradição e a vanguarda. Por isso, na conferência "Juego y Teoría del Duende", ele indica que o "duende" brota de vários imaginários (popular, estético, social, histórico, filosófico, cultural), sendo alimentado para dar sumos ao criador artístico pela força do povo e pelas suas vozes culturais. Isso difere a metáfora do "duende" das outras duas: a da musa e a do anjo.
Se o "duende" parece ser uma alteridade ou potência no processo de escritura, é notório que esse elemento da cultura está no domínio do ato criacional, dando abertura ao que o escritor não controla, como algo que lhe escapa. Para Jacques Rancière (2009)8, isso que é inapreensível não pertence ao poeta nem à cultura, contudo pertence a um inconsciente da própria escritura. Tal inconsciente é motivado por sentidos camuflados de "algo a mais", que são fugidios. Porém, esse inconsciente deixa-se mostrar, nunca se revelando totalmente. Em suma: ele seria um ponto cego da escritura.
Para a psicanálise lacaniana, segundo Ana Maria Agra Guimarães (2015), a racionalidade nem sempre obedece ao regime estético, pois a falta e o objeto artístico se entrelaçam em mão dupla, sem haver um código hierárquico e estabelecido por regras e leis explícitas. Ou seja, a escritura se dá na sublimação como um vazio que se configura na apresentação da própria falta, em termos simbólicos, ao passo que o escrito (o texto) é reafirmador do próprio vazio: "A escritura sublimatória não faz senão isto: percorrer o caminho do impossível, contorná-lo e, pelo significante, dar plasticidade ao vazio, para que ele surja e, em si mesmo, seja usufruto do desejo" (GUIMARÃES, 2015, p. 68).9 escritura porta uma incompletude em si tal qual o ser humano é incompleto também.
Assim, o "duende" não tem consciência de si mesmo. Ele é plena e totalmente impulso criador, surgido de raízes profundas e inominadas. O "duende" lorqueano é a força poderosa que assume a criação em ato – no canto, na escrita, no gesto –, mesmo se sabendo um dínamo de intenso esforço humano no artista. Devido a sua intensidade, o "duende" possui intensidade catártica, como o gozo barthesiano, por ser emoção física e sensível.
Na conjugação dos motivos conscientes e inconscientes na criação literária e enduendada de García Lorca, a fisicalidade do poema e a da escritura teatral tornam-se o "fato de arte" ou a materialidade sensível, para Jacques Rancière, por resultarem "de uma ação voluntária e de um processo involuntário" (2009, p. 30). Esse pensamento de arte significa o pathos e o logos como busca de algo não tangível na busca em si e na própria perda. Então, a obra de arte que se apresenta é "vestígio, rastro e fóssil" de uma palavra muda – que fala – em seu âmago, porque "a escrita literária se estabelece, assim, como decifração e reescrita dos signos da história escritos nas coisas" (2009, p. 35). Jacques Rancière define: "O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos subsolos do mundo social. Ele recolhe os vestígios e transcreve os hieróglifos pintados na configuração mesma das coisas obscuras e triviais" (2009, p. 36).
Na obra lorqueana, tudo fala, tudo aponta para uma destinação. O "duende" não dita nem sopra o texto literário, o desejo dele quer se perder e morrer no escuro do sangue do artista, pois a obra é sempre inacabada. Seja no canto e na dança, seja na escritura criativa, o "algo a mais" e excedente não pode ser desprezado. A arte precisa do corpo do outro para se manifestar tanto no criador quanto no leitor ou espectador. Para García Lorca: "El duende gusta de los bordes del gozo en franca lucha con el creador" e "el duende hiere, y en la curación de esta herida, que no se cierra nunca, está lo insólito, lo inventado de la obra de un hombre" (1986, p. 315). Pode-se, sem dúvida, pensar sobre a ferida deixada como rastro do "duende", o qual encontra em si mesmo o pharmakon platônico: a palavra escrita. Ela, a um só tempo, é remédio e veneno, por facilitar o esquecimento e a pseudossabedoria e por enfraquecer a memória – fonte do verdadeiro saber.
O "duende" visa ao espetáculo do fim derradeiro da sua força, sendo que a autoria habita na linguagem da arte, resta crer na sobrevida da ressurreição do autor mediante a sublimação e a destrutividade, enquanto destino da pulsão de morte originária à procura de um novo objeto estético, no caso o texto literário. A pulsão de morte é criadora; por conseguinte, admite-se, segundo Elisabeth de Franceschi (2000, p. 82),10 "on ne saurait créer sans détruire; [...] la création ex nihilo elle-même advient après une destruction sans reste".11 Na obra de García Lorca, o ato de criação e de marca autoral procede de um impulso para a morte e para o inominado como origem de nova vida textual, porque a decomposição e a destruição da tradição e da modernidade estão implicadas na escritura do objeto literário novo e na singularidade da mundividência do criador.
Toda obra artística é combate contra as potências da morte e as da própria vida, pois a criação se transmuta em função catártica e reparadora. Assim, o mergulho nas coisas intensas e nebulosas é o gatilho para a escritura, essa escritura enduendada performatiza a busca do outro a ser invadido. A obra de arte aguarda a resposta do leitor e do espectador, pois o deciframento e as complementações advêm fossilizados no objeto estético – o ponto cego. Tal posição tem a demanda do ato criador como tradutório do desejo de escritura, como se dissesse: "Traduza o que 'eu somos'". Em si, a obra permite-se a multiplicidades de traduções: "Traduire c´est trahir, transposer, maîtriser les signes et les desordres, les travailler, les tortures"(p. 96).12
O "duende" insiste, no processo criativo, em agir sobre a realidade nem que seja por um instante. Os poemas e as peças de García Lorca avançam sobre as singularidades a fim de configurar o artístico, o poético e o vivido em certa plenitude pulsante, mesmo que no silêncio os abata ao final da performance. Mas um sentido há de restar, por mínimo que ele seja, mesmo que seja a centelha última, a qual guarda no seu íntimo a mais terrível – língua de fogo – pronta para devastar a cotidianidade.
Verdade e jogo da escritura lorqueana desvelam o entrelaçamento mortal entre autor, obra e público: o "duende" apenas sorri e se lança no escuro de seu próprio enigma; ao sair de cena, apaga suas pegadas, mas não elimina sua significação. O desejo de escritura reúne potências sublimatórias de criação, apesar de não suportar a ideia de redução ou supressão como revolta contra a morte: a obra de arte. Se há uma mensagem, há uma ausência. Duas presenças são evocadas nessa ausência-presentificação no texto literário: a do autor e a da autoria. Para o irmão de García Lorca, Francisco,13 os planos de arte e de realidade interpenetram-se no processo criativo, ou seja, um ponto nodal perpassa toda a obra de Federico: as paixões cegas. Isso marca a produção do "poeta elegíaco" em um tipo de jogo dramático que une o mundo da ficção e a realidade viva, valorando o mundo como um grande palco. Francisco García Lorca arremata: "Poetry, laughter, and tears are the ingredientes of his dramatic invention" (1947, p. 10).14 Ainda sublinha sobre García Lorca que, como disseram, se Federico foi poeta pela "graça de Deus", ele também recebeu a mesma "graça" por ser dramaturgo. Neste ensaio, eu diria: "Pela graça do duende", pois ficam os rastros da vida e da ficção, do homem e do poeta.
Mudam-se os tempos, muda-se o público. A cada nova leitura ou encenação da obra de García Lorca, sentidos e significações – que estavam prenhes nas palavras – libertam-se nos novos corpos que se deixam tomar pelo objeto artístico, ou seja, a obra de arte (potência de extremada força ou fúria sagrada do "duende") causa um fenômeno estético. O "duende" ausenta-se como se morresse de fato até invadir o próximo corpo, ele se apresenta na ruptura de estilos, notadamente como figura instauradora de marca pessoal e de autoria do objeto estético. Assim como o escritor e os artistas precisam do corpo para concretizar sua arte, o "duende" desaparece e renasce no amor e na morte que habitam as entranhas do sangue da cultura e da tradição. Se a poesia enduendada de García Lorca tem a força da voz do povo espanhol, ela trava guerras contra a efemeridade e a inconstância do tempo. Ela ergue-se como voz e grita: Olé!, significando Alá!, clamando em todas as terras do planeta: Senhor!
1. Jorge Guillén escreve no prólogo de Obras completas, de Federico García Lorca, com recopilación, cronología, bibliografía y notas de Arturo del Hoyo. Madrid: Aguilar, Tomo I, 1986.
2. Imaginacion, inspiracion, evasion. In: GARCÍA LORCA, Federico. Obras completas. Recopilación, cronología, bibliografía y notas de Arturo del Hoyo. Madrid: Aguilar, Tomo III, 1986, p. 258-271.
3. Juego y teoría del duende. In: GARCÍA LORCA, Federico. Obras completas. Recopilación, cronología, bibliografía y notas de Arturo del Hoyo. Madrid: Aguilar, Tomo III, 1986, p. 306-318.
4. WILLER, Claudio. Como ler García Lorca?. Jornal de Poesia. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/cw02c.html> Acesso em: dez. 2016.
5. PLATÃO. Fedro. In: Diálogos. 2. ed. Belém: EDUFPA, 2007.
6. ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Julián Marías (Ed.). México: Cátedra-REI, 1987.
7. ORTEGA Y GASSET, José. A desumanização da arte. Trad. Ricardo Araujo, 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
8. RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Ed. 34, 2009.
9. GUIMARÃES, Ana Maria Agra. A encenação do real: a sublimação em "A paixão segundo G. H." e "Água viva", de Clarice Lispector. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015.
10. FRANCESCHI, Elisabeth de. Amor artis: pulsion de mort, sublimation et création. Paris: L'Harmattan, 2000.
11. Tradução minha: "Não podemos criar sem destruir; [...] a própria criação ex nihilo só acontece depois de uma destruição sem trégua".
12. Tradução minha: "Traduzir é trair, transpor, controlar os signos e as desordens, trabalhá-los, as torturas".
13. GARCÍA LORCA, Federico. Three tragedies: Blood Wedding; Yerma; The House of Bernarda Alba. Translated by James Graham-Lujan and Richard L. O'Connell. Introduction by Francisco García Lorca. Penguin Plays. Harmondsworth: Penguin, 1946.
14. Tradução minha: "Poesia, riso e lágrimas são os ingredientes da invenção dramática [de Lorca]".
*Roberto Medina: Doutorando em Teoria Literária e Estudos Literários Comparados na Universidade de Brasília, Medina publicou artigos em revistas científicas nacionais e internacionais. Escritor e professor de escrita criativa, ministra diversos cursos de pós-graduação. Atua com o foco em literatura brasileira, poesia, contos e história da arte, poéticas visuais, teoria literária e adaptações para cinema e teatro. Sua pesquisa abrange questões relacionadas à linguagem poética e dramática, além dos projetos estéticos e ideológicos de Federico García Lorca. São relevantes suas pesquisas acerca da noção de autoria, de criação artística e de autor.
Página publicada em outubro de 2017. PORTAL DE POESIA IBERO-AMERICANA. Seção ENSAIOS. Ano 14, No. 51 (Setembro-Outubro 2017) Brasília, DF. ISSN 2447-1178
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